Os filhos que virão



Professores de Física: seus alunos terão filhos um dia; estes filhos chegarão à idade em que terão curiosidade; eles perguntarão aos seus pais o que é a Física. É então que veremos se fizeram um bom trabalho.

Muito conteúdo e pouco tempo dão ao aluno uma escolha: decorar o que puder para fazer o mínimo. Em minhas aulas em escolas particulares prefiro sempre ter certeza de que os alunos (leia-se: "boa parte deles") realmente entenderam o que eu comentei antes de passar para um próximo tema ou mesmo antes de aprofundar o estudo do que acabei de falar. Tomo cuidado com o uso prematuro da matemática, por exemplo. 



Eu me deparo com a seguinte situação: 



"fulano, quanto vale 3x-x?" e o aluno responde? "3, professor". 

Sem querer deixar evidente meu espanto, peço calmamente ao aluno que justifique a resposta, pelo que ele responde prontamente e sem constrangimento: 

"ora, professor, tinha o 3 e o x, o senhor tirou o x (“menos xis”), então sobra o 3". 

A lógica dele está impecável, mas ele se esqueceu de aplicar a convenção dos operadores que não se parece com a que ele inventou. Ele é burro? Não. É um excelente aluno, que tem uma lógica impecável, bom comunicador, mas péssima memória, além de grande timidez. Fui saber, mais tarde, que ele nunca teve coragem de perguntar a ninguém como se resolva aquilo por que achava sua pergunta elementar demais. Diante disso pergunto ao professor que fez o plano de aula: em quantas aulas o professor será capaz de levar esse aluno do ponto em que ele está até a compreensão de uma série de somas de vetores em uma composição de alavancas no estudo do torque (que hoje é ensinado a crianças de 14 anos)? Uma “aulinha”? Duas? 

Matemática, para quem não sabe matemática, não é um sistema de linguagem para modelar um fenômeno e nem uma ajuda para visualizá-lo. Trata-se de mais um complicador junto à própria matéria. É como se eu fosse tentar explicar para um leigo a “força de atração” de um buraco negro “dentro” do horizonte de eventos utilizando a relatividade geral e dizendo que “a luz ‘cai’ no buraco negro de forma tão inexorável como a chegada do dia de amanhã” – adaptado de fala do Prof. Carlos Heitor. - (referindo-se à deformação do cone espaço-tempo). 

Ora, para uma criança que não consegue visualizar a conexão dos eixos de um plano cartesiano no desenho de uma curva, desenhar um gráfico não deve bastar para explicar a queda livre - embora acredite que a "analogia" deva ser feita para estimular o amadurecimento de sua mente concreta. 

Do mesmo modo, dizer que “tal coisa” acontece por que F=m.a é tão sem sentido e autoridade para um adolescente quanto dizer que não se deve furar o sinal por que “é proibido”. Nosso aluno é menos ingênuo do que os alunos de antigamente, e precisa ser convencido de maneira mais inteligente que isso, mas à sua altura, mas em sua linguagem. 

Muitos planos de aula são feitos assim: na aula 1 falo disso, na aula 2 falo daquilo e na aula 3 falo "d'aquilôtro" e pronto, em três aulas eu "passo" o conteúdo todo. Desse jeito, o máximo que se vai conseguir fazer é "passar" o conteúdo mesmo. Faltou pensar que o aluno precisa amadurecer uma idéia complexa que acabou de ser apresentada antes de operar com ela. E precisará de mais tempo e prática conceitual antes de operar com modelos matemáticos. A terceira Lei de Newton, por exemplo, é uma coisa extremamente fascinante, se entendida organicamente, mas absolutamente complicada e descartável se justificada em termos de “somatória de forças = zero para o equilíbrio”. E normalmente a terceira lei é trabalhada (início, meio e fim) em um ou dois encontros, no máximo, virando ponto passivo em seguida. 

Aqui, estamos olhando a física com os olhos do aluno, quem interessa por ora. É quem estará vivo quando eu me aposentar, dizendo para filhos e netos dele o que eu não estarei mais em posição de dizer. Do mesmo modo, foram nossos pais que nos disseram um dia: “Física é legal, mas é muito difícil, eu não sou bom em matemática”. 

E, por fim, a consequência de todo o nosso trabalho estará impressa no consciente coletivo das gerações que tocarmos. Na escola em que trabalhei certa vez, alguns pais diziam: “meu filho vai ser advogado, não precisa disso (Física). Deixem-no em paz”. Percebam o perigo: o professor que deu aula de Física para esse pai não está entre nós para se defender, mas a opinião do ex-aluno dele agora é argumento na diretoria (aluno = cliente; cliente tem razão). Se o professor "passou" a matéria toda eu não sei, mas, se depender desse aluno-pai ela pode até deixar os currículos brasileiros.

Professores de Física: seus alunos terão filhos um dia; estes filhos chegarão à idade em que terão curiosidade; então eles perguntarão aos seus pais o que é a Física. É então que veremos se fizeram um bom trabalho. 

Patrick Bonnereau