Acho prudente tratar da questão do sistema de cotas em
primeira pessoa, para não dar a esse texto pretensões maiores do que a de
comunicar um ponto de vista. Minha estratégia é partir do que é consenso entre
aqueles que são pro e contra ao Sistema de Cotas. Um ponto pacífico entre quase
todos é o fato de que a intenção dessa política é “Promover a Justiça”.
Uma questão: o que é
considerado uma escola justa de um modo geral? Em seu artigo “O que é uma Escola Justa?”, François Dubet traz uma discussão bastante
sóbria sobre a possibilidade de se haver justiça genuinamente em uma escola, e
a conclusão é a de que NÃO, não de maneira absoluta. Segundo ele, os aspectos
essenciais a uma escola justa são contraditórios entre si.
A escola justa
deve
1 – ser
meritocrática, ou seja com uma competição escolar justa entre alunos desiguais?
2 – compensar
desigualdades sociais, dando mais aos que tem menos, rompendo assim com o que
seria uma rígida igualdade?
3 – concentrar-se
em garantir um mínimo de conhecimento a todos?
4 – permitir
que cada um desenvolva talentos específicos, independente de seu
desenvolvimento escolar?
A
contradição entre esses modelos é clara:
“Uma meritocracia escolar justa não garante a diminuição das desigualdades; a busca de um mínimo comum arrisca-se a limitar a expressão dos talentos; uma escola preocupada com a singularidade do indivíduo age contra a cultura comum que uma escola deve transmitir e também é um forma de injustiça... Portanto, não existe solução perfeita, mas uma combinação de escolhas e respostas necessariamente limitadas”
François Dubet
Em tempos de sociedades aristocráticas, onde os méritos
vinham do nascimento, a meritocracia foi uma evolução. Ter o mérito como
princípio seria um passo rumo à democracia. Contudo, como sabemos, nem todos
competem igualmente nesse nosso sistema. Nem mesmo na França, onde quase 100%
dos alunos frequentam o ensino básico, as diferenças sociais foram diminuídas sensivelmente.
O máximo que se conseguiu foi uma certa mobilidade social.
Desigualdades sociais não são questões somente da condição
de oportunidade do estudante.
“as desigualdades entre os sexos e entre os grupos sociais persistem, e desde o início, os mais favorecidos tem vantagens decisivas. Essas desigualdades estão ligadas às condições sociais dos pais, mas também aos seu desenvolvimento com a educação, ao apoio que dão aos filhos, bem como à sua competência para acompanha-los e orienta-los.“
François Dubet
Uma
geração sem acesso à educação põe em risco a educação da geração seguinte. Além
disso, o próprio modelo meritocrático é falido no ponto de vista da justiça, já
que é extremamente cruel com quem fracassa.
“os [alunos]
“vencidos”, os que fracassam, não são vistos como vítimas de uma injustiça
social e sim como responsáveis por seu
fracasso, pois a escola lhes deu, a priori, todas as chances de ter sucesso
como os outros.”
François Dubet
A própria natureza deste modelo falha em promover justiça porque
produz mais vencidos do que vencedores.
“Finalmente,
podemos questionar a própria ideia de mérito. O mérito é outra coisa além da
transformação da Herança em virtude pessoal? Ele é outra coisa além de um
modelo de legitimar as desigualdades e o poder dos dirigentes?”
Rawls (1987)
E Rawls completa: “se
não somos responsáveis por nosso nascimento, como sê-lo por nossos dons e
aptidões?”. Segundo ele, nem sempre sabemos o que é REALMENTE mérito num
processo de ranqueamento de competências e qualidades. Ter nascido super-dotado
ou em um contexto familiar favorável traz resultados que fatalmente acarretarão
em sucesso num sistema meritocrátio. Mas as posições alcançadas em virtude
dessas condições são mérito de fato? Será que Brancos e negros valem-se SOMENTE
de seu esforço para conquistar o que possuem?
Se entendermos que não há uma saída simples para essa
questão, admitiremos soluções pontuais e progressivas. Não se pode acabar de
vez com o preconceito, mas o que for feito para nos aproximar da solução será
bem-vindo. E o sistema de cotas é uma medida neste sentido. O sistema de cotas
é intrinsecamente provisório, já que parte da crença de que as desigualdades
podem ser reduzidas a ponto de não ser mais necessária a compensação ora
proposta por ele.
Também é importante ter em mente que as cotas são uma OPÇÃO para
o público atendido por elas, e não uma obrigação. Isso significa que os negros
AMPLIAM suas oportunidades, mas não estão SUJEITOS a ela. Do ponto de vista do
Negro, uma vaga a mais em uma universidade de qualidade é um benefício líquido
indiscutível. Se o Negro fosse OBRIGADO a “entrar pela porta dos fundos”, como
diz Tom Martinz (crítico das medidas de Cotas), então diríamos que o negro está
sendo inibido ou impedido de fazer algo em virtude de lei que o diferencia dos
demais de maneira inconstitucional. Mas não. O que vemos aqui é uma OFERTA de
oportunidade, um benefício.
Se um cidadão que tem o direito às cotas não acha essa
política conveniente, então que se matricule nas vagas convencionais, que estão
ali para todos – e, portanto, para ele. Se um sujeito em uma festa não come
frango, a inclusão de frango no cardápio não deve ser considerada uma falta de
respeito, já que ele pode simplesmente comer o que mais estiver sendo servido.
Um negro que não se acha beneficiado por uma competitividade reduzida no
ingresso à universidade deve competir com os outros “igualmente”, mas sem tirar
o direito do colega, que por ventura precise dessa chance. E, se ele acha que o
respeito e a dignidade estarão sendo feridos a longo prazo, que diga isso ao
colega oprimido que vê o ingresso na universidade como a única chance de sair
de sua condição.
Pode ser que as cotas criem desdobramentos negativos, como quase toda medida social se arrisca
a provocar. Mas então o INDIVÍDUO negro que será “prejudicado” no futuro estará
em condições de lutar pelos seus direitos com um diploma em mãos e suas
oportunidades ampliadas.
Há também quem argumente contra o sistema de cotas alegando
que há pessoas necessitadas não
incluídas na política (índios e brancos pobres, por exemplo), e que isso
poderia acarretar revolta, além de ser injusto com quem não recebe o benefício.
Excelente ponto. Na verdade, antes de atingir a recente política de cotas, esse
pensamento deveria atacar a aposentadoria de R$25.000,00 que um juiz recebe por
mês até o fim de sua vida (e que os índios e brancos pobres não recebem); ou
quem sabe os excelentes recapeamentos feitos periodicamente em bairros de luxo residenciais
de baixa densidade demográfica contra a ausência de saneamento básico em outras
regiões pobres do município (de alta densidade demográfica). O fato de um
programa, medida ou campanha não atingir todos os segmentos possíveis não
desqualifica a sua eficiência em relação ao seu público alvo. Se fossemos levar
esse argumento adiante, jamais poderíamos aprovar qualquer projeto de lei, obra
ou programa de intervenção pública que não tivesse abrangência absoluta (o que
é utopia em qualquer sociedade que tenha o mínimo de diversidade).
Diz-se, também, que pessoas não-negras e negros de alta
renda podem acabar se beneficiando do sistema de cotas, corrompendo-o. É claro
que um sistema qualquer que envolva recursos ou benefícios pode ser vítima de
tentativa de corrupção. Mas se a corruptibilidade
de um sistema ou lei for implicar em impedimento de sua sanção, então o sistema
legislativo brasileiro, nossa constituição e quaisquer regimentos seriam sem
valor, visto que somos um País onde regra e lei não são levadas a sério
tipicamente. Nossas leis abundantes e difusas têm interpretações tão absurdamente
diversas – isto quando chegam a ser observadas – que sequer temos certeza se
elas realmente existem independentemente de interesses pessoais. O sistema de
moradia estudantil, o SUS, as escolas públicas, as licitações, os cargos
públicos... Todo serviço público ou benefício que tem chances de ser fraudado teria
que ser revisto antes de barrar a Política de Cotas sob esse argumento.
E os “brancos”
que argumentam que estão sendo lesados
com essa “vantagem” dos negros também devem pensar melhor antes de levantar
essa questão. Por que se tem um grupo que leva vantagem há centenas de anos
esse grupo não é o de negros, e se a justiça tiver que ser feita, é justo que
se comece cronologicamente.
Por fim, temos a questão
legal, que é delicada e polêmica. Os seguintes artigos (mas não somente
eles) lidam diretamente com essa questão:
Art. 3º. Constituem objetivos fundamentais da República Federativa do Brasil:
III - erradicar a pobreza e a
marginalização e reduzir as
desigualdades sociais e regionais;
IV - promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação.
Está claro que o sistema de cotas
está de acordo com o inciso III do Artigo 3º.
Já o inciso IV é frequentemente invocado para condenar as cotas como uma forma
de preconceito. O comando do inciso é PROMOVER O BEM ESTAR sem preconceito. Trata-se
de um OBJETIVO FUNDAMENTAL da república, e não de uma sujeição do estado. Mesmo
assim, o direito de invocar esse inciso cabe ao prejudicado, no caso os brancos – que supostamente estariam
discriminados do grupo dos “beneficiados”. E, novamente, se isso for ser levado
em conta, então teremos que abrir o baú histórico de desigualdades, o que não
terminará bem para os brancos de qualquer forma.
Art. 5o. Art. 5º Todos são iguais perante a lei, sem
distinção de qualquer natureza, garantindo-se aos brasileiros e aos
estrangeiros residentes no País a inviolabilidade do direito à vida, à liberdade, à
igualdade, à segurança e à propriedade, nos termos seguintes: (incisos
suprimidos)
Vemos alguns ataques à política de
cotas amparando-se no artigo quinto e alegando que a distinção de pessoas
quanto à cor é preconceituosa. Se promover Cotas para os negros for considerado
distinção illegal entre indivíduos, então assentos especiais aos idosos e vagas
para deficientes também o é. Contudo, não é esse o entendimento que se deve dar
à Lei, ao meu ver. Uma vaga para um idoso entre os assentos de um ônibus ou
cotas obrigatórias para emprego de deficientes nas empresas com mais de 100
funcionários são medidas justamente para ASSEGURAR o direito à igualdade
previsto nesse artigo, e não atitudes discriminatórias.
Art. 19. É vedado à União, aos Estados, ao Distrito Federal e aos Municípios:
III - criar distinções entre brasileiros
ou preferências entre si.
Esse artigo condena exatamente o
histórico racista contra os negros desde que chegaram ao Brasil há centenas de
anos. Invocá-la para beneficiar os brancos sem revisar os débitos com os negros
seria uma negligência colossal.
Para aqueles que vasculham a constituição em busca de brechas para
incriminar as cotas, uma lembrança do princípio
da inércia do poder judiciário. Segundo esse princípio, o Juíz não deve
promover um julgamento se ele não for provocado por uma ação de uma parte
interessada. A função do judiciário é promover a paz, e não cabe uma
intervenção em uma situação pacífica, mesmo com previsão legal para ação.
"o exercício espontâneo da atividade jurisdicional acabaria sendo contraproducente, pois a finalidade que informa toda a atividade jurídica do Estado é a pacificação social e isso viria em muitos casos a fomentar conflitos e discórdias, lançando desavenças onde elas não existiam antes"
Cintra, Grinover e
Dinamarco
Por isso não
faz sentido invocar a constituição para defender os negros de algo que os
beneficia, e nem esperar que o SIMPLES fato de haver inconsistência com o texto
da constituição leve o judiciário a interferir na situação.
Além disso, dizer
que os brancos estão sendo lesados e discriminados a ponto de invocar a lei
para defender a igualdade social a seu favor chega a ser engraçado em nosso
contexto atual. Se for para defender a bandeira da IGUALDADE, é então que as
cotas são uma ação positiva.
Existe ainda
uma crítica à política de cotas em que se alega que Negros e classe de baixa
renda deveriam ser tratados da mesma forma, recebendo cotas por necessidade
financeira concreta, e não por necessidade presumida, que seria o caso da cor.
Segundo este pensamento, os estudantes de escolar pública deveriam ter acesso
às cotas, e não somente os negros. É uma boa idéia que tem um bom fundamento,
mas não se trata da mesma situação. Um branco de baixa renda pode encontrar seu
caminho e mudar seu padrão de vida, e isso é mobilidade social. Difícil é
imaginar como seria a “mobilidade colorimetrica”. Um negro vai ser sempre
negro, e seu estigma estará relacionado com a sua aparência (infelizmente). A
política de cotas tem um recorte particular e uma meta, e nessa meta o publico
de interesse é o publico que enfrenta dificuldades devido a sua cor. Da mesma
forma, a Lei Maria da Penha visa proteger as mulheres de maus tratos, mas não
trata das vítimas de builing de modo geral. Sabemos que há violência de
mulheres contra homens e que há homens que sofrem violência tanto quanto certas
mulheres. Mas a Lei Maria da Penha tem um alvo e um foco, e se dá ao que se
propõe, e nem por isso tentaram barrar a Lei Maria da Penha por ser injusta com
os homens franzinos e vítimas de mulheres violentas.
Conclusão: o sistema de cotas é uma medida
que BENEFICIA DIRETAMETNE e a curto prazo o indivíduo negro; Os negros que não
quiserem se beneficiar dela são livres para abrir mão do benefício, respeitando o direito dos demais; os brancos
que se acham lesados não observam o contexto social real, onde lesados são, e
sempre foram, os negros; Índios, mulheres e outras minorias deveriam apoiar
essa medida para que o exemplo chegue ao seu próprio grupo ao invés de boicotar
o benefício dos negros só por que a medida não os contempla. Ser minoria por
condição social não é o mesmo que ser minoria por cor ou aparência. Negro não é
sinônimo de “pobre”, e tartar o preconceito não é a mesma coisa que tartar a
pobreza.
